[Entrevistas atópicas] Ameríndios conectados e o habitar Krahô

13/05/2019 | Artigos, Entrevistas, Notícias

A pesquisa atópica
Isabelle Stengers define laboratórios de pesquisa como “fábricas das coisas novas”; isto é, um lugar onde cria-se um novo mundo. O ofício do pesquisador, nesta perspectiva, é o de produzir o novo: novas coisas, novas palavras, novos conceitos. O sentido do pesquisar atópico vem sendo, nestes anos, cada vez mais movido por este desafio. Pensar, nomear, revelar, florear… o novo. Desta forma, publicaremos nesta seção uma série entrevistas, conduzidas pela prof. Marina Magalhães, com os pesquisadores atopinos que apresentarão o sentido inovativo e anacronístico do seu pesquisar.

A primeira entrevista da série Pesquisas atópicas convida o leitor a descobrir novos significados sobre o habitar ameríndio conectado, através do estudo desenvolvido pelo Prof. Thiago Franco, doutor em Ciência da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), na área de Teoria e Pesquisa em Comunicação, na linha de Comunicação e Ambiências em Redes Digitais. Ele é mestre em Comunicação, Cidadania e Cultura (2014), especialista em Comunicação Integrada (2008) e graduado em Ciência da Comunicação (2006) pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

Membro do Centro Internacional de Pesquisa ATOPOS (USP), onde trabalha com teorias da comunicação e redes digitais e integra a linha de pesquisa “Tekó: a digitalização dos saberes locais”, o pesquisador também está associado ao Sostenibilia (Osservatorio Internazionale di Teoria Sociale Sulle Nuove Tecnologie e la Sostenibilità), da Università Sapienza di Roma. Coordenou, até o ano de 2019, dois projetos de pesquisa na UFG: “Pensamento Digital Contemporâneo: Povos Tradicionais e novas Perspectivas para a Cibercultura” e “UX, Transmedia Storytelling e a pesquisa da comunicação digital”. Atualmente está à frente do projeto de pesquisa e extensão “Cidadania Digital: modos de existência” voltado para comunidades, em situação de vulnerabilidade social, no Estado de Goiás. É um dos coordenadores do “Projeto Xingu”, realizado em parceria com a Università Sapienza de Roma.

Hoje atua como docente, assessor de projetos e articulações da Coordenação de Extensão (CDEX) e membro do Programa de Direitos Humanos (PDH) da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Também é professor da Faculdade Sul-Americana (FASAM) no mesmo Estado, onde também como docente na Universidade Federal de Goiás (UFG).

 

Marina Magalhães [MM]: Você acaba de se tornar doutor, pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese “Ameríndios conectados: as formas comunicativas de narrar o mundo, de acordo com as imagens dos modernos e dos Krahô”. Ao descrever o modo de conexão das paisagens não-ocidentais a partir das formas comunicativas do habitar Krahô, você optou por desenvolver uma narrativa reticular. Em que consistiu esse percurso e quais elementos participaram dessa narrativa?

Thiago Franco [TF]: A primeira coisa que devo ressaltar é que a tese não é sobre os Krahô. Eles são meus parceiros no caminho da pesquisa. A palavra método vem do grego μέθοδος e significa “caminho para além” ou também pode ser “seguir um caminho”. O tempo todo me apego nessa perspectiva para pensar novas formas de fazer pesquisa, de sentir um caminho ao caminhar, de pensar o método. Viver em uma comunidade não-ocidental, por quase um ano, me fez refletir sobre o modo de fazer pesquisa. A narrativa da tese é uma fenomenologia da origem. Ao buscar a origem das coisas, acabo percebendo um processo paralelo de desconstrução do modo tradicional do ato de pesquisar. O modo tradicional está ligado a uma visão moderna de categorização e sistematização do pensamento. Isso que chamo de tradicional parte da premissa básica de decantação do sujeito-objeto. Os Krahô me mostraram que essas sistematizações são ficcionais e podem distorcer a sensibilidade do pesquisador. Na minha tese não existe objeto. O ocidente determinou como se deve fazer pesquisa, contudo existem outros modos de experimentar o mundo. Acredito que devemos nos libertar do que é dado, para repensar como podemos fazer ciência. A tese consiste na ecologia de todas as coisas. Não tem objeto, mas tem objetivo e a proposta atingiu resultados.

MM: Você entende por habitar “uma grande experiência que eleva em consideração os fenômenos e a linguagem”. Como você definiria o habitar Krahô, sobretudo em sua relação com os não-humanos?

TF: As conexões não podem ser pensadas apenas pelas relações, mas dentro da ecologia. A linguagem é orgânica e o tempo todo faz referência a um mundo em que a sociedade e a natureza não estão em um modo separado. Um está contido no outro sem determinação de ordem sequencial. A sonoridade do chamado para o banho coletivo faz referência ao barulho da água. O mundo informacional em que vivemos nos propõe outros ambientes e, às vezes, nos esquecemos que estamos em Gaia. Tudo está conectado com tudo: a internet, a floresta, as pessoas, os mundos espirituais, as bactérias etc. O habitar Krahô é uma ecologia. As vigas das casas podem ser traduzidas, da língua Krahô para o português, como costelas de animais. Eu acredito que é uma extensão uterina, as famílias são matrilineares, e a mulher exerce uma forte influência nessa composição. O conjunto de aldeias, quando visto por satélite, revela uma rede de conexões por trilhas. Contudo, as conexões não são apenas geográficas, mas cosmológicas, performáticas, imagéticas e, claro, linguísticas. Os Krahô habitam sua linguagem.

MM: A sua pesquisa envolveu as dimensões digitais e não digitais do habitar Krahô, sendo um dos tópicos dedicamos ao tema do “habitar a rede digital enquanto extensão da aldeia”. Como a chegada da internet às aldeias possibilitou “outras formas de conexão e de caminhar”?

TF: A experiência do digital possibilita outras perspectivas. Os Krahô estão conectados ao digital há cerca de sete anos. Eu acompanhei todo o processo desde as primeiras postagens. Isso não tem volta. Está acontecendo no mundo inteiro. O digital está conectando todos os povos das florestas. A partir das conexões dos Krahô, mapeei cerca de outras 90 etnias conectadas no Facebook. Eles trocam informações o tempo todo, nas mais diversas línguas presentes no Brasil. Devemos lembrar que, hoje, existem mais de 150 línguas faladas no Brasil. Contudo, apenas o português é reconhecido como oficial. A presença dessas etnias não só marca um lugar nas redes, mas desvela modos rituais não ocidentais. A própria comunidade registra o cotidiano e os momentos ritualísticos. De São Paulo, você pode acompanhar um ritual funeral Krahô no meio do cerrado, quase na divisa do Tocantins com o Maranhão. As redes se aproximam, mas também modificam a experiência. Essas comunidades estão experimentando e se fazendo presentes nesses lugares virtuais. E esse processo vem servindo a um fenômeno interessante que é o Net-ativismo. Invasões de terra, saques nas reservas, assassinatos passaram a ser denunciados pelas redes, a partir de vozes que vivem na floresta.

MM: Você conheceu o povo Krahô em 2003, quando chegou a ser batizado. Mais recentemente, viveu com eles por um ano e ajudou a organizar uma ilha de edição na aldeia. Como foi este processo de imersão na dimensão de uma pesquisa que rejeita o paradigma sujeito-objeto?

TF: Nenhuma experiência da tese foi imposta. Tudo partiu da comunidade. Sempre mantive diálogo com os Krahô. Tenho uma ligação com eles há vários anos. Existem vários talentos do audiovisual que nasceram na comunidade. Eu apenas enxerguei o potencial dessas pessoas e propus um grupo de cinema documental pensado e realizado pela própria comunidade. A aposta deu certo e um dos filmes, feito por eles, foi finalista em um festival em Salvador. A comunidade ficou muito feliz. Durante meu tempo na aldeia fazíamos sessões de cinema com filmes produzidos pela comunidade. Tudo feito na língua local. Os temas eram variados, mas muito ligados ao cotidiano. O modo de filmagem é anárquico. Uma pessoa acaba assinando a direção, mas na hora todo mundo participa. A comunidade filma e é filmada. Não tem o olhar cineasta-objeto. Essa relação direta é bem mais complexa na perspectiva Krahô. Esse modo de olhar o cinema vem de um trabalho experimental da década de 1960, de Sol Worth e John Adair, junto aos Navajo, nos Estados Unidos. No Brasil, temos a experiência do “Vídeo nas Aldeias” que é atuante desde os anos de 1980. O interessante é que os Krahô desenvolveram um dispositivo de diálogo. Para quem era ocidental o filme era pensado de uma forma e para a comunidade de outra. Eles tiveram a sensibilidade de perceber que na linguagem cinematográfica o mundo também era percebido de forma diferente, por isso era adaptada de acordo com o público que veria o filme.

MM: Na tese você trata de um processo de transubstanciação do povo Krahô. Como podemos entendê-lo?

TF: Todas as substâncias, elementos, modos de existência estão em processo de digitalização. O que é carbono agora também é bit. O que é espirito, para muitas populações, agora também é bit. Um não anula o outro. Ambos coexistem. Os significados estão dispostos em experiências distintas, mas conectados ao mesmo tempo. Na perspectiva desse fenômeno, uma floresta pode ser definida pelo que está escrito em alguma página Wiki. Eu sempre pergunto para meus alunos se eles sabem o que é uma floresta. Eles me respondem com informações que retiraram da Internet. Logo em seguida eu costumo perguntar se eles já foram na floresta Amazônica. Como é estar lá sob a pressão da floresta? Eles me respondem com dados da Internet. O digital cria outra experiência e ele transubstancia a matéria em 0 e 1. Ao mesmo tempo promove outra percepção do mundo. Nas comunidades tradicionais, o digital não é o ambiente dominante, que ocupa todo o espaço de fala. Entidades como um machado sagrado, ao ser digitalizado, não perde sua essência de sagrado. Para os Krahô, por exemplo, a machadinha Kajré é habitada por uma imagem (espirito). Quando eles olham a imagem da Kajré no Facebook é sua essência que está lá. Apenas mudou de corpo. Você pode apontar a imagem e perguntar o que é. Eles respondem “é a Kajré”. Eu posso retrucar e dizer, “mas a Kajré está aqui na minha mão. Como pode estar no Face?”. Eles me respondem, “é Carõ dela que está lá”. Carõ é espirito e/ou imagem, ou seja, existe um trânsito da essência entre as substâncias. Por isso, é uma transubstanciação.

MM: A linguagem pode ser entendida como um sistema ou um processo orgânico. Na pesquisa, você revela que o tempo todo a linguagem dos Krahô faz referência a um mundo em que a sociedade e a natureza não estão em um modo separado. Que palavras ou conceitos inovadores descobertos neste estudo você destacaria?

TF: Eu pensaria por palavras-chave. Um dos destaques é o termo Hakràj (pode ser traduzido como aquilo que é importante). Trabalhei junto com os Krahô na intenção de entender o que era importante para eles e não exatamente para minha tese. A palavra Hakràj não se tornou um conceito, mas um modo de ver as coisas na comunidade. Outro termo que daria destaque seria a cartografia atópica. A “cartografia atópica” é uma metodologia de verificação. O mapeamento ocorre em ambiente digital e não digital, para dar conta de uma amostra complexa. Deve levar em consideração o trânsito, os grafos dinâmicos, os humanos, as coisas, a complexidade. A transubstanciação é um termo pensado pelo Professor Massimo Di Felice, é um termo que tomo emprestado para pensar a condição Krahô e acaba se tornando um conceito importante. Por fim destaco o Karõ pensado enquanto ecologia. Karõ pode ser traduzido como imagem e/ou espírito e por muito tempo foi inserido, por antropólogos, em uma perspectiva dicotômica imagem e espírito. Prefiro pensar o Karõ enquanto um elemento autêntico da complexidade, da transubstanciação, que está sempre em trânsito: imagem, reflexo, espírito, dinâmico etc.

Sobre Marina Magalhães: Membro do Centro Internacional de Pesquisa Atopos, é doutora em Ciências da Comunicação (2018) pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas (2011) e bacharel em Comunicação Social (2008) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Atua como professora substituta da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e professora convidada da Universidade Lusófona do Porto (Portugal), além de ser investigadora integrada ao Instituto de Comunicação da Nova – ICNOVA (UNL). Também é pós-doutoranda pelo Departamento de Comunicação e Pesquisa Social da Università di Roma Sapienza (Itália), onde desenvolve pesquisa sobre Tecnologias e Redes Digitais para a Sustentabilidade e está associada ao Observatório Sostenibilia. E-mail: marinamagalhaes@msn.com.